dormir, pro dia nascer feliz.
os dias são longos e parecem não acabar. ela correu, atrasada, para a aula de português e descobriu, ao chegar na faculdade, que esta não ia acontecer. ela sentou debaixo da amendoeira e esperou por alguns momentos o coração recobrar o ritmo abalado pelas muitas escadarias subidas no passo apressado. se ela fosse magra, teria alcancado mais rapidamente o segundo andar do bloco A que, por sua vez, fica no primeiro ponto alto da faculdade - que fica num morro. com o fôlego recobrado e a raiva dissipada pela inútil pressa, rumou de volta ao lar. pensou em tirar a tarde para dormir, visto que as últimas semanas tinham sido de provas, trabalhos e estresses pessoais. no entanto, lembrou-se da feira de estágios que tinha pensado em visitar em busca de uma ocupação mais bem remunerada e, também, do aniversário da mãe que estava chegando. comeu qualquer coisa - e, sim, reconheceu que "comer qualquer coisa" é um erro e, talvez, por isso ela não consiga enfrentar os espelhos -, tomou um banho rápido e, de modo "ninja", fez as unhas tão largadas há quase duas semanas. como ir caçar emprego com as unhas feias? ela imaginou. saiu debaixo de sol, esperou o ônibus por mais de quinze minutos e rumou para botafogo. pelo menos era um desses ônibus com ar condicionado, o que faria da longa viagem - de cerca de quarenta minutos - menos cansativa. tinha muito sono. tinha pouca vontade. mas tinha uma teimosia imensa e não pretendia se deixar vencer pela enorme vontade de encostar a cabeça em algum lugar e dormir umas doze horas seguidas. saltou em botafogo, no final da general góis monteiro. atravessou o sinal contrariando as leis de trânsito. leis de trânsito? que seja! viu um rosto conhecido na multidão. lembrou, instântaneamente, das muitas coisas que imaginou sobre aquele bem e tão mal conhecido por ela. em questão de segundos, processou: falar ou não falar? caminhavam em direções opostas porém estavam prestes a se cruzarem. se cruzaram. ela engasgou, deu nó na garganta. ele fingiu que nem viu. stop! o tempo parou. como em um filme, lentamente os corpos passaram um ao lado do outro sem interferirem em suas rotas. ele continuou seu caminho, ela também. baixou a cabeça. imaginou a razão pela qual tinha sido ignorada. imaginou que deveria se acostumar. imaginou que se fosse amigo seu, teria feito o mesmo por ela. ainda assim, se ele soubesse... mas não sabia. e não há de saber. ela continou caminhando de passo apressado e chegou. feira cheia. cheia de gente que nem ela procurando um espacinho entre os adultos. olhou, olhou, olhou. pegou alguns folhetos, leu algumas faixas, viu alguns rostos que já havia visto antes em ambientes parecidos. por cerca de uma hora e meia avaliou muitas opções, mesmo sabendo que não sairia de lá com um destino definido. não importava. sentia-se responsável por fazer algo por si mesma. algo que agradaria a ela e aos pais, que tanto prezam pela seriedade da filha. não garantiu nada, mas fez um bom estudo do que pode vir a garantir. cansada, com sono e calor, lembrou-se do presente da mãe. mesmo com vontade de voltar, dormir, esquecer aquele encontro furtivo que cortou-a como faca, caminhou - quase se arrastando - até o shopping. anda pra lá, anda pra cá. shopping cheio e ela sentindo-se tão maltrapilha. as pessoas de botafogo são diferentes das pessoas de vila isabel. entrou em loja, saiu de loja, tomou um mate. duas horas - ou mais - depois, achou o presente ideal. bobagem, mas dentro do orçamento apertado - que ela insiste em estourar com seu consumismo desenfreado - que agradaria a mãe pelo simples fato da lembrança: um perfume com cheiro de capim limão. capim limão era da sua infância e das férias nos hotéis fazenda de minas com a família. a mãe adora chá de capim limão. a mãe adora pôr folhas de capim limão na gaveta. a mãe ia gostar da lembrança do cheiro das férias da infância. e lá se foi boa parte do dinheiro do mês, mas por uma boa causa. saiu do shopping, pegou o ônibus cheio de volta. viu gente estranha entrar. temeu ser assaltada. encostou a cabeça na janela e se segurou pra não dormir. o corpo pedia um tempo, pedia pra dormir mais cedo, pedia um banho quente aromático. via seu reflexo na janela. o rosto abatido, o corpo tão longe dos padrões impostos. todo dia ouve que está mais magra, todo dia agradece com um sorriso, todo dia, em frente ao espelho, questiona. a cada dia come um pouco menos. talvez, um dia, pare de comer. as costas doíam. fica muito tempo sentada em sala, digitando, conversando. os olhos estavam cheios de olheiras. o cabelo, bagunçado. estava abatida físico e psicologicamente. saltou na esquina de casa. subiu a rua aos trancos e barrancos. de repente, uma vontade de chorar. uma vontade de abraçar forte e chorar baixinho. uma vontade bem grande de abrir o portão de ferro e ver um rosto conhecido e amado. e a constatação: agora, ela é incapaz de amar. levou cerca de sete meses pra se interessar da maneira mais leve e simples por alguém, imaginem vocês quanto tempo ela vai levar pra amar de novo... sabia que ia abrir o portão e ouvir os cães latindo. ao entrar em casa, veria o pai na sala vendo televisão e a mãe na cozinha aprontando o jantar. sabia que não ia poder chorar, a não ser trancada no banheiro debaixo de uma ducha bem quente. largou a mochila e o presente no quarto, pegou uma toalha e correu pro chuveiro. ela só queria que o dia acabasse. e que o próximo começasse melhor, mais leve, mais alegre, mais simples. sem choro, sem medos, sem recriminações e sem cansaço.
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ainda bem que vem aí o feriado. ela pensou.
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ouvindo: a bad dream - keane.
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ainda bem que vem aí o feriado. ela pensou.
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ouvindo: a bad dream - keane.