quinta-feira, 20 de setembro de 2007

d'o amor mal consumido.

(ando lendo rubem fonseca no ônibus. pronto, indiquei o motivo.)
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havia trocado-a. aliás, trocado não. não se trocam seres humanos como mercadorias com defeitos. havia conhecido outra que, por diversas razões, satisfazia-o melhor do que ela. e, portanto, acreditou ser melhor seguir em frente de acordo com o que sentia. ou, ao menos, achava que sentia.
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então deixou-a. embora "deixar" seja um termo que, quando relacionado a esse tipo de situação, soe muito forte, a climatização situacional parecia ser essa. deixou-a imaginando, é claro, que não seria fácil para aquela que mostrara-se tão vulnerável, tão frágil, tão submissa. porém, os tais caminhos do coração (ou da mente, ou dos órgãos genitais. isso, é claro, depende da personagem.) são estranhos e, vez ou outra, desembocam num beco sem saída não-satisfatório.
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não que ele não estivesse satisfeito. estava. achava que estava. parecia estar. no entanto, nos últimos três ou quatro dias, pensara muito nela. ela que tinha a pele muito alva e os cabelos lisos e de cor forte. tinha olhos de um verde indescritível, com raios de mel e trovões castanhos. tinha carnes de sobra nas coxas, no quadril. como diziam os antepassados: era bem fornida. uma mulher que hoje, em meio a essa paranóia desvairada do emagrecimento extremo, talvez não fosse a mais bem vista. mas, compreendendo a sua linhagem européia, era um tipo que viveria em berlim comumente. era alta. muito alta.
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intrigou-se. por que ela havia de vir a seu pensamento com tal intensidade nos últimos dias? não conseguia encontrar uma pequena razão que fosse. não podia entender. não fazia sentido. mas é fato que muitas coisas não precisam fazer sentido para serem dadas cabo, não é verdade? e movido pela angústia de não conseguir removê-la do pensamento, pensou em telefonar-lhe.
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- alô?
- pois não!
- emiliana?
- pois não!
- sou eu... carlos alberto.
- carlos alberto?
- sim! sou eu, emiliana! já não te lembras mais?
- ah! carlos alberto! mas claro... claro que lembro.
- como vai?
- vou bem. e tu? que surpresa me telefonares...
- não tiro-te do pensamento há dias, emiliana! não sei o que me passa!
- e tu esperas que eu saiba?
- não, não... de modo algum. mas acredito ser um sinal.
- um sinal?
- sim, um sinal. um sinal de que devíamos, em verdade, tentar novamente.
- carlos, fostes tu que me deixastes, lembra?
- sim, lembro-me. mas são águas passadas, emiliana. não estava pensando com clareza.
- e ela? o que foi feito dela?
- ela não me importa! é tu que me importa, emiliana! somente tu!
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e ela, como num suspiro, perdeu as palavras. não compreendia tampouco acreditava. quem já havia deixado-a uma vez podia, tranqüilamente, deixá-la mais uma vez. podia buscar apenas uma aventura. podia sentir saudade apenas das noites que tiveram ao invés de todo o tempo e de todo o sentimento dedicados. emiliana hesitou.
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- pois então? emudecestes?
- carlos, há muito esperava por esta tua volta...
- pois então! estou de volta! estou de volta e estou louco!
- louco?
- com saudades, emiliana! com o corpo em brasa, emiliana!
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novamente o silêncio tomou conta da linha. na cabeça de emiliana um turbilhão de imagens do que tinha vivido ao lado de carlos alberto e de toda dor e sofrimento pelos quais havia passado. amava-o ainda, porém agora carregava embutida uma raiva, um despeito. pensar em carlos era quase como atiçar esses sentimentos ruins, embora soubesse piamente que tudo não passava de um amor mal consumido, mal curado.
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- eu também, carlos... eu também...
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suspirou mais uma vez. a raiva lhe ardendo as maçãs do rosto, consumindo-a por dentro. por um segundo imaginou essa ser a perfeita oportunidade para vingar sua honra, seu amor desperdiçado. emiliana, ainda que fosse uma jovem de valores, enrubescia ao menor pensamento do que considerava traição por parte de carlos alberto. havia confiado nele, havia se entregado. e ele lhe pagara trocando-a, como se fosse mercadoria qualquer. não, jamais havia superado. e tinha ali, nas mãos, a vingança preparando-lhe um grande e saboroso prato.
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- então, que me dizes? vamos nos ver? pelos velhos tempos...
- pelos velhos tempos, carlos...
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e sua cabeça maquinava o encontro. sua cabeça fornecia-lhe crueldades em série como jamais havia sido capaz de imaginar. uma moça de valores, de família, católica, ajuizada... com pensamentos tão obscuros e punitivos. nunca passaria pelo pensamento de carlos que tão dócil jovem ariana pudesse ser capaz do que ela agora planejava friamente.
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marcaram então o encontro em um motel qualquer que não levantasse surpresas. ele, por não ter certeza do que se tratava aquela repentina saudade de emiliana, não havia deixado a outra. portanto, precisava ser discreto. e emiliana, por sua vez, também não visava levantar suspeitas de sua premeditada punição.
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na hora e no local marcado lá estavam os dois. as mudanças eram mínimas. ele ainda era o mesmo rapaz moreno, de estatura média, corpo forte. ela, no entanto, um pouco menos robusta. imaginou que poderia ter a ver com o término do relacionamento. ela definhara um pouco mas ainda tinha o brilho perolado no rosto, aquele rosto europeu e firme. ele salivara. naquele momento tinha a certeza de que sentia falta de estar entre aquelas carnes alvas, as coxas fartas, as ancas largas como feitas para carregar um filho, um varão. ela, no entanto, sorria maliciosamente instigando-o.
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despiram-se rapidamente. não havia tempo a perder. ela então deitou-se ao comprido. os cabelos de um tom forte espalhavam-se pelos lençóis brancos como uma cachoeira. sorriu-lhe como quem sinaliza positivamente. ele então deitou-se sobre ela. beijou-lhe o pescoço. beijou-lhe o colo. beijou-lhe os seios. deteve-se nas auréolas rosadas.
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emiliana, vagarosamente, ergueu o corpo. primeiro o ventre, depois o tronco. em poucos minutos, os dois estavam de joelhos em cima da cama. ela lhe afagava a nuca enquanto ele lhe cobria o torso nu com beijos. ela arrastou-o para a beirada, calculadamente. os pés dele estavam, agora, suspensos no ar. sua única sustentação eram os joelhos. foi então que ela lhe interrompeu, segurando-o pelos ombros.
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- sentistes mesmo minha falta...
- nem imaginas!
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ela lhe sorriu e num violento golpe atirou-o contra o chão. sua cabeça atingiu o assoalho duro e frio e, em poucos minutos, havia um a poça de sangue por debaixo dela. fitava-a atônito. mas o trauma impedia que proferisse qualquer palavra ou mesmo fosse capaz de realizar movimentos.
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ainda com o sorriso nos lábios carnudos, emiliana lhe disse:
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- amo-te demais. não suporto a idéia da existência de outra. não suporto que a outra esteja contigo como eu estive.
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ela aproximou-se e delicadamente lhe beijou o tórax nu. suas mãos percorreram toda a extensão do corpo que, aos poucos, perdia a vida. faltava a carlos alberto o ar e sua pulsação era fraca, muito fraca.
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aos poucos ela levantou-se. vestiu-se. apagou cuidadosamente as impressões digitais do quarto e do corpo. os olhos de carlos estavam turvos, embaçados. ela então calçou os sapatos de salto agulha e, com luvas de pelica, destrancou a porta.
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de relance, antes de sair, contemplou o robusto e rijo corpo embebido em sangue:
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- se tu soubesses como te amo, carlos... se tu soubesses...
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suspirou uma última vez. nenhuma lágrima sequer lhe escorreu pelas maçãs avermelhadas do rosto. ao contrário, sorriu. sorriu com o deleite que havia experimentado na primeira vez em que carlos a tomou nos braços. fechava-se ali um ciclo. curava-se ali o amor mal consumido.
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emiliana trotou porta à fora.
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ouvindo: dolcissima maria - renato russo.