quarta-feira, 27 de dezembro de 2006

garoto do coqueirão.

era ali, de frente pra um coqueiro enorme, na bela e ensolarada ipanema, que os cariocas alternativos estendiam suas cangas, ouviam em seus mp4 alguma banda cujo nome começa com "the" e celebravam o sol das mais variadas maneiras. rostos diferentes porém sempre os mesmos, se é que vocês me entendem. e eu, é claro, não destoava da "gangue". com meus óculos grandes, meu mp4 berrando alguma banda "the" e o cigarro empunhado, eu esperava pelo pôr do sol, o gran finale de uma tarde no coqueirão. eu sempre tinha um livro a mão. vinícius, rilke, pessoa, blake... geralmente poesia.
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e eu gostava de sentar e fingir ler aquele livro por horas. fingir, afinal, o meu maior interesse em freqüentar aquele trecho de praia tinha um metro e oitenta e cinco, jeito de carioca não-mauricinho, tatuagens nas costas e o sorriso de canto-de-boca mais james dean que eu já tinha visto. e, carinhosamente, eu o apelidara de "garoto do coqueirão".
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todo sábado era lei vê-lo por lá, batendo uma bolinha e se refrescando e, quando a tarde caía violenta por sobre os moptops e as franjas, ele procurava um rosto conhecido para apreciar o espetáculo de fim de dia que, certamente, fica mais bonito visto do coqueirão. todo sábado eu estava lá, com meu cigarro, meu mp4 e meu livro, fosse qual fosse, na esperança de que, algum dia, o garoto do coqueirão fosse reconhecer meu rosto e me fazer companhia enquanto o sol se despedisse. todo sábado.
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e assim, as semanas começaram a passar como horas contadas para que os sábados viessem, uma obssessão. o garoto do coqueirão era poesia em movimento, diferente dos outros garotos de qualquer outro trecho da praia, do calçadão, das ruas de ipanema e, até mesmo, do coqueirão em si.
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até que, um sábado, acordei ansiosa e quando olhei o céu da janela do meu apartamentinho, vi nuvens. negras, pesadas e prontas pra acabar com a minha alegria de fim de semana. desanimei. tive a certeza de que naquele sábado ele não estaria lá. então, pensei em não ir. tomei café já praticamente decidida quanto a ficar em casa e procurar um programa menos praiano e carioca pra me distrair. e foi quando me veio um estalo: por que não ir e sentar na areia e ler de verdade? o sol estava escondido, mas ainda assim eu podia sentar e ler, pra variar, alguma coisa construtiva. melhor do que ler em casa, com todo o barulho da rua invadindo pelas janelas e pela porta. então, pus um biquine, um short e uma camiseta e parti, com sonetos de vinícius debaixo do braço.
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o coqueirão estava vazio. em dias nublados, os cariocas se escondem. talvez durmam mais. talvez durma o dia inteiro. e eu comecei a imaginar se não deveria ter feito isso. mas, como já estava lá... sentei, acendi meu cigarro usual, liguei o mp4 e abri o livro. soneto do amor total, vinícius de moraes. suave, doce, verdadeiro. palavras ideais pra um desanimado dia nublado em meio ao verão carioca.
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ouço o farfalhar da areia e penso ser mais algum carioca entediado tentando aproveitar, de qualquer maneira, o coqueirão. o farfalhar aumenta, aumenta em direção ao ponto em que me encontrava alojada. não dou bola, continuo mergulhada densamente em vinícius. uma presença senta-se ao meu lado. continuo interessada no livro, presa.
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- vinícius... é uma grande inspiração.
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uma voz. nunca havia ouvido aquela voz. levanto meus olhos devagar das páginas e, para minha surpresa, garoto do coqueirão... você, falando comigo! será que fui capaz de conter o espanto? eu, ali, sem palavras, apenas retruquei como pude:
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- é... é meu preferido.
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- já vi que você lê muito. todo sábado você tá com um livro diferente aqui.
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meu deus, ele havia me notado! imaginei um coro de anjos naquele momento sonorizando a cena.
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- ah... é... eu venho sempre aqui...
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- pois é, eu reparei! mas eu sou meio sem jeito, nunca via você com conhecidos meus, então nunca tive a oportunidade de falar com você... mas eu queria, sabe? acho legal que você vem aqui, lê seu livro, vê o sol se pôr... é bacana, você parece ser bem tranqüila.
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e agora ele estava me analisando. eu já tinha tentado fazer isso com ele e consegui foi criar uma estorinha sobre o garoto do coqueirão que eu tinha prazer em relembrar antes de dormir.
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- é... eu não sou muito de agitação nem nada...
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- é, você parece um tipo calmo de pessoa, eu acho isso bacana... ah...! eu nem me apresentei, né? meu nome é eduardo...
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- ana.
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eu sorri sem jeito. eduardo era um nome legal. acho que, de alguma forma bizarra, combinava com a tatuagem nas costas que eu gostava de admirar quando ele caminhava em direção a água.
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- pô, prazer... e aí, posso ver o pôr do sol aqui com você, ana?
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eu mal podia acreditar. o garoto do coqueirão, querido de dez entre dez franjudas da área, ia ver o pôr do sol comigo. tudo bem, a praia estava vazia. mas, ainda assim, era surreal.
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- claro...! o pôr do sol daqui do coqueirão é mais bonito...
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- eu tenho essa mesma impressão!
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sorrimos e vimos o sol se pôr num espetáculo verdadeiramente único. raios vermelhos e amarelos riscavam o azul do céu carioca como em um show de luzes. ficamos em silêncio observando e, internamente, agradecendo ao responsável por tanta beleza. em algum momento a minha mente se perdeu imaginando outras tardes no coqueirão ao lado dele e, viajei mais e mais imaginando tardes com ele e as crianças no coqueirão. sem dúvida eu gostaria de saber o que se passava na cabeça dele naquele momento. e o que se passaria sobre mim.
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e quando o sol se pôs, nos olhamos quase como se fôssemos novos. era hora de levantar e, em direção a casa, pensar no que a noite de sábado oferecia. então levantamos os dois, apenas trocando olhares. caminhamos até a extensão onde a praia vira calçada.
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- bem, é aqui que eu me despeço, vou seguir aquela rua.
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eu disse, sem jeito. queria poder não ir. mas o tempo da praia já havia se esgotado.
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- ah... mas você vem todo sábado, né?
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- eu venho...
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- então, sábado que vem?
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- sábado que vem...
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- e a gente pode conversar mais... quem sabe?
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- a gente pode...
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- então tudo bem...!
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e nos abraçamos como só os cariocas sabem se abraçar. acho engraçado. o nosso abraço gruda e demora, é gostoso. sinto falta disso em outros estados, em outros países, em outras praias. ele seguiu pelo calçadão, eu segui pela rua. eu flutuava leve. e o coqueiro da calçada ria quase como levando crédito pelo que ali havia acontecido. talvez o coqueiro seja mágico e tenha esse dom de fazer com que seus freqüentadores percebam-se.
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não sei, só sei que foi assim.
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eu sonhei com esse texto. eu juro!
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ouvindo: man of sorrow - bruce dickinson.