sábado, 3 de novembro de 2007

agosto. e o que mais puder vir depois.

"o gosto de lágrimas chegava nas madrugadas, quando conseguia me arrastar da sala para o quarto e me jogava na cama grande, sem ana, cujos lençóis não troquei durante muito tempo porque ainda guardavam o cheiro dela, e então me batia e gemia arranhando as paredes com as unhas, abraçava os travesseiros como se fossem o corpo dela, e chorava e chorava e chorava até dormir sonos de pedra sem sonhos." - (caio fernando abreu)



o céu é azul nesse exato momento. estou prostrado na janela do quarto, de pé junto a cabeceira da cama. e o céu é azul cortado por fios e copas de árvores. e alguns poucos prédios como o meu ou maiores. lembro-me do dia em que vim parar aqui. não me aprazia o bairrismo desses lugares na zona norte. eu gostava do caos de botafogo às seis da tarde e tomava aquela estridência de buzinas e freios e gritos como uma sinfonia necessária. do caos, a criação. eu sempre repetia como um mantra, a fim de poder trabalhar com todo aquele ruído. mas botafogo era meu. no entanto, eu era de mais alguém. e foi assim que, em agosto, trouxe as roupas, os sapatos, uma toalha e o laptop. antes aqui era pouso e, agora, é casa.

no começo aqui viviam os pais, os recém-casados e grávidos pais. o prédio tem apenas três andares e, pelo que consta, nenhum espaço para crianças. no entanto, fosse qualquer um de vocês a vê-lo, convenceria-se em poucos segundos a construir um lar entre essas paredes. um ar pasmacento toma as paredes creme, a rua cinza pontilhada de canteiros e portões baixos. e os dois, é claro, foram envolvidos pelo clima residencial que esse bairro emana. e converteram o pequeno apartamento em um reino de uma só princesa. miúda nos primeiros anos, porém florescida com o tempo. e, hoje, rainha desse pedaço escriturado de terra.

e eu, que fora sempre um descrente, me vejo entregue ao doce marasmo dos dias que aqui se passam. é verdade que meus contos, de repente, tornaram-se mais serenos. e, quiçá, mais açucarados. aposto com qualquer um de vocês que, nesse instante, mocinhas lêem essas linhas suspirando ao invés de trabalharem. o que seria motivo de vergonha para muitos que, como eu, prezaram o mundo cão como cenário do que acontece na vida real. a minha vida real agora é outra. embora o cigarro e o café, sinais da perturbação que todo gênio (ou pseudo) levam consigo, ainda resistam bravamente aos ares menos poluídos e aos apelos dela.

os meus amigos mais antigos já não me reconhecem mais. tenho a impressão, ainda que besta, que meus pais também não me reconheçam. e o meu editor, quando lê as minhas novas coisas, questiona-me com o olhar se ando escrevendo ou se apenas deixo que escrevam por mim. estou mais gordo, apesar da dieta saudável dela. acho que porque tenho comido ao invés de me exaurir em fumaça, café e substâncias alcoólicas. e não passo mais as madrugadas caminhando entre os letreiros da praia. agora eu fico aqui, ainda que mudo, observando ela sentar-se no sofá e ler um livro qualquer.

às vezes ela assiste tv. às vezes ela deita com as pernas para cima, apoiadas no braço da poltrona do canto. às vezes ela me sorri. e quando ela me sorri, eu sei. nós sabemos. às vezes ela fala. e fala muito. e fala ininterruptamente. e eu fico estudando os movimentos da boca, dos braços, dos quadris. e quando eu me prostro na bancada de fórmica branca, onde apóio o laptop, num ato de destreza, ela apóia-se com as mãos, ergue o tronco e senta. vira o torso para o outro lado. dispõe os pés na minha cintura. ficamos eu, o laptop e ela. e ela fecha a tela e, de leve, escorrega o aparelho para o lado. então, gentilmente, ela segura a minha nuca. e me afaga. dedinhos finos e ágeis.

as minhas mãos impacientes fixam-se em suas ancas sempre que possível. em mim há a herança genética dos antepassados que, sem dúvida, aprecia a desproporção daqueles quadris. dizem que é instintivo. gosto da sua bacia, os ossos apontando por debaixo da pele. gosto do abdômen. e não importa o quanto ela se exercite, há uma curvatura saliente perfeita para que uma cabeça pesada como a minha possa encontrar repouso. gosto de suas coxas. são fornidas. há uma estria ou outra na junção das mesmas com as ancas. adoro todas as suas marcas. tem sinais e cicatrizes. se eu fosse poeta, diria que são microcosmos. e as mocinhas, mais uma vez, suspirariam. mas gosto de ser cru. são marcas de nascença e dos dias que se passam. e tenho tesão. curta e grossamente, tenho tesão. gosto dos seios, médios e que lhe causam tremendas paranóias. mas, para mim, são ideais. e firmes. e no colo, mais uma vez, lhe saltam os ossos. o que, a meu ver, é interessante. ela não é magra.

e quando me vejo sozinho, esse quarto me parece vasto demais. o apartamento é uma selva. o mundo lá fora, então, nem se fala. o conforto daquele templo me faz falta. e ela passou a ser um vício maior do que os outros que sempre tive. que me falte o cigarro, a bebida, o café e os bons livros... mas que não me faltem jamais as horas perdidas naquela pele alva. que não me faltem os dois olhos, ora verdes, ora castanhos, estranhando meu silêncio cada dia mais aparente. e que não me faltem os saltos ágeis na bancada, os ballets no chuveiro, as contorções na cama, os malabarismos no sofá. que não me falte a cabeleira ruiva dela manchando as fronhas, os lençóis e boa parte das minhas camisas brancas que, cá entre nós, caem melhor no corpo dela.

no auge dos meus vinte e poucos, quase trinta, eu me sinto um velho vinícius de moraes pronto para desfalecer de amar tanto e amiúde. quem diria? esse tipo calado, sisudo, de pele moura e têmporas desgastadas não passa de um joguete nas mãos dela, menina nos meus olhos. menina dos meus olhos.





ouvindo: anna begins - counting crows.
the time when kindness falls like rain
it washes me away and
anna begins to change my mind
and everytime she sneezes i beleive it's love and
oh lord, i'm not ready for this sort of thing...