(agora com o eu-lírico feminino. no entanto, não gostei do resultado.)
meus pais sempre me perguntam o que ele faz da vida. e eu sempre respondo, com o mesmo ar cínico, que ele escreve. então os dois me olham em reprovação, com caras de quem gostaria de poder dizer: "escrever não é emprego, é hobby". ele escreve contos, canções, coisas para os outros. às vezes escreve cartas. e agora meteu na cabeça de escrever um romance. passa os dias em casa observando a vida, dentro e fora do quarto. acho que, vez ou outra, me estuda.
fui acordada pelo calor naquela manhã de sábado. senti meu corpo grudar no colchão, era o suor. abri os olhos e da janela, que fica logo em cima de onde fica a cama, um raio maldito de sol já se esgueirava para dentro. "puta que o pariu!", pensei. mesmo que quisesse, meus olhos não poderiam mais se fechar. já estava desperta. então levantei com o cuidado de passar rente pelo espelho que ele insistiu em colocar em frente a cama. eu me pergunto, vez ou outra, o porquê daquele troço estar lá. se é porque ele, embebido em seu narcisismo, gosta de se ver logo cedo de barba por fazer, cabelos desgrenhados e tórax desnudo, pressupostamente inundando o cômodo de virilidade (sabe, esses homens são muito cheios de si porque pensam poder recontar o mundo como se fossem deuses). ou se é para os momentos em que ele é vil de outras formas com a minha ajuda. talvez a segunda opção seja mais válida. caminhei até a cozinha.
como de costume, lá estava ele prostrado na bancada de fórmica branca. olhava alheio qualquer coisa a sua frente, a porta que levava até a sala. e, ainda como sempre, tinha feito café para um batalhão. e ele bebe sozinho porque sabe que eu faço clareamento nos dentes. beijei seu rosto, a barba áspera me roçando a pele. "bom dia", sorri e peguei um copo de suco na geladeira. atravessei a porta até a sala.
o cômodo era escuro porque ele fechava a varanda e punha as cortinas velando tudo. aquela ausência de luz me incomodava logo cedo. ele gostava de ser soturno. e eu, apesar do calor dos dias cariocas, gostava da claridade fininha iluminando tudo o que eu dispusera harmoniosamente ali. alonguei-me. faço isso desde pequena, antes para crescer e hoje em dia por puro costume. ele ri. acha graça de como eu me preocupo em ter uma vida mais saudável. naquele exato momento, às seis e pouco, ele já fumava. no começo, eu esbravejava. hoje o pequeno apartamento não seria o mesmo sem aquele odor impregnado nas paredes. fuma como um condenado. e, graças à ele, talvez eu morra do mesmo enfizema quase concretizando a profecia de vinícius de moraes: "para viver um grande amor é muito, muito importante viver sempre junto e até ser, se possível, um só defunto — pra não morrer de dor."
então voltei e sorri. vagarosamente segui até o banheiro. ele ainda inerte na bancada. deixei a porta entreaberta, me despi, me meti debaixo d'água gelada. poucos minutos e ele bateu na porta. "entra", eu disse. silêncio. ele guardava as palavras para os textos. meteu-se debaixo do chuveiro também. empurrou-me contra a parede de azulejos brancos. os dentes cravando-se levemente no lóbulo esquerdo. as mãos descendo-me pelas ancas, pelas coxas. cumplicidade do calor das peles. suas mãos e seu peso prenssando-me. era violento e doce. sempre. sempre ríspido, mas de toque paradoxalmente aveludado. tinha total domínio por sobre corpo e alma meus sem que precisasse sequer de qualquer comando. eu era dele, como objeto qualquer que alguém pudesse ter em casa. suspirei um "eu te amo". silêncio.
cruzei o corredor despida. na cabeceira da cama, uma de suas camisas. vesti. tinha o cheiro dele, tinha o calor, tinha o toque das lembranças. recolhi as roupas espalhadas pelo quarto, os lençóis e os sapatos e todas as outras coisas que foram, durante a semana, assentando-se pelo chão. e ele, prostrado na porta, parecia me observar desejoso. era alto. de pele moura. cabelos negros navalhados. tinha olhos castanhos e sisudos. tinha o tórax nu, o torso longo. as costas eram um pouco envergadas e, na face, o desgaste do fumo acumulando-se. era sublime. com um ar sério de professor e pai.
talvez eu fosse objeto de novo estudo seu a ser publicado. naquela manhã não me havia dito sequer uma palavra. às vezes queria ser capaz de entender o que se passava nos longos períodos em que o máximo que eu podia ouvir era a respiração pesada, em decorrência dos cigarros, cigarrilhas, charutos e tudo o mais. no entanto, a porta esteve sempre aberta e jamais havia se retirado por muito tempo. ia, vinha, ia, vinha... e cada ausência parecia menor que um momento. a cada volta parecia mais silencioso, mais taciturno, no entanto, mais viril. talvez me desejasse em todos os cômodos do pequeno apartamento, afinal, era sábado. eu manchava sua blusa com os resquícios de tinta que escorriam do meu cabelo. e ele, talvez, contemplasse a transparência proporcionada por aquela vestimenta.
isso eu jamais saberei.
meus pais sempre me perguntam o que ele faz da vida. e eu sempre respondo, com o mesmo ar cínico, que ele escreve. então os dois me olham em reprovação, com caras de quem gostaria de poder dizer: "escrever não é emprego, é hobby". ele escreve contos, canções, coisas para os outros. às vezes escreve cartas. e agora meteu na cabeça de escrever um romance. passa os dias em casa observando a vida, dentro e fora do quarto. acho que, vez ou outra, me estuda.
fui acordada pelo calor naquela manhã de sábado. senti meu corpo grudar no colchão, era o suor. abri os olhos e da janela, que fica logo em cima de onde fica a cama, um raio maldito de sol já se esgueirava para dentro. "puta que o pariu!", pensei. mesmo que quisesse, meus olhos não poderiam mais se fechar. já estava desperta. então levantei com o cuidado de passar rente pelo espelho que ele insistiu em colocar em frente a cama. eu me pergunto, vez ou outra, o porquê daquele troço estar lá. se é porque ele, embebido em seu narcisismo, gosta de se ver logo cedo de barba por fazer, cabelos desgrenhados e tórax desnudo, pressupostamente inundando o cômodo de virilidade (sabe, esses homens são muito cheios de si porque pensam poder recontar o mundo como se fossem deuses). ou se é para os momentos em que ele é vil de outras formas com a minha ajuda. talvez a segunda opção seja mais válida. caminhei até a cozinha.
como de costume, lá estava ele prostrado na bancada de fórmica branca. olhava alheio qualquer coisa a sua frente, a porta que levava até a sala. e, ainda como sempre, tinha feito café para um batalhão. e ele bebe sozinho porque sabe que eu faço clareamento nos dentes. beijei seu rosto, a barba áspera me roçando a pele. "bom dia", sorri e peguei um copo de suco na geladeira. atravessei a porta até a sala.
o cômodo era escuro porque ele fechava a varanda e punha as cortinas velando tudo. aquela ausência de luz me incomodava logo cedo. ele gostava de ser soturno. e eu, apesar do calor dos dias cariocas, gostava da claridade fininha iluminando tudo o que eu dispusera harmoniosamente ali. alonguei-me. faço isso desde pequena, antes para crescer e hoje em dia por puro costume. ele ri. acha graça de como eu me preocupo em ter uma vida mais saudável. naquele exato momento, às seis e pouco, ele já fumava. no começo, eu esbravejava. hoje o pequeno apartamento não seria o mesmo sem aquele odor impregnado nas paredes. fuma como um condenado. e, graças à ele, talvez eu morra do mesmo enfizema quase concretizando a profecia de vinícius de moraes: "para viver um grande amor é muito, muito importante viver sempre junto e até ser, se possível, um só defunto — pra não morrer de dor."
então voltei e sorri. vagarosamente segui até o banheiro. ele ainda inerte na bancada. deixei a porta entreaberta, me despi, me meti debaixo d'água gelada. poucos minutos e ele bateu na porta. "entra", eu disse. silêncio. ele guardava as palavras para os textos. meteu-se debaixo do chuveiro também. empurrou-me contra a parede de azulejos brancos. os dentes cravando-se levemente no lóbulo esquerdo. as mãos descendo-me pelas ancas, pelas coxas. cumplicidade do calor das peles. suas mãos e seu peso prenssando-me. era violento e doce. sempre. sempre ríspido, mas de toque paradoxalmente aveludado. tinha total domínio por sobre corpo e alma meus sem que precisasse sequer de qualquer comando. eu era dele, como objeto qualquer que alguém pudesse ter em casa. suspirei um "eu te amo". silêncio.
cruzei o corredor despida. na cabeceira da cama, uma de suas camisas. vesti. tinha o cheiro dele, tinha o calor, tinha o toque das lembranças. recolhi as roupas espalhadas pelo quarto, os lençóis e os sapatos e todas as outras coisas que foram, durante a semana, assentando-se pelo chão. e ele, prostrado na porta, parecia me observar desejoso. era alto. de pele moura. cabelos negros navalhados. tinha olhos castanhos e sisudos. tinha o tórax nu, o torso longo. as costas eram um pouco envergadas e, na face, o desgaste do fumo acumulando-se. era sublime. com um ar sério de professor e pai.
talvez eu fosse objeto de novo estudo seu a ser publicado. naquela manhã não me havia dito sequer uma palavra. às vezes queria ser capaz de entender o que se passava nos longos períodos em que o máximo que eu podia ouvir era a respiração pesada, em decorrência dos cigarros, cigarrilhas, charutos e tudo o mais. no entanto, a porta esteve sempre aberta e jamais havia se retirado por muito tempo. ia, vinha, ia, vinha... e cada ausência parecia menor que um momento. a cada volta parecia mais silencioso, mais taciturno, no entanto, mais viril. talvez me desejasse em todos os cômodos do pequeno apartamento, afinal, era sábado. eu manchava sua blusa com os resquícios de tinta que escorriam do meu cabelo. e ele, talvez, contemplasse a transparência proporcionada por aquela vestimenta.
isso eu jamais saberei.
ouvindo: lover lay down - dave matthews band.
spring sweet rhythm dance in my head,
and slip into my lover's hands
kiss me, won't you kiss me now?
and sleep i would inside your mouth