por ana, com ana, em ana.
“era ana, era ana, pedro! era ana a minha fome! explodi de repente num momento alto, expelindo num só jato violento meu carnegão maduro e pestilento, era ana a minha enfermidade.” – (raduan nassar)
o calor despertou-a. ressonava leve por sobre o colchão no canto do quarto. acima, uma janela. e não ventava ou chovia naquele modesto bairro da zona norte. era a maldição do superaquecimento que havia chegado até mesmo para os que se escondem debaixo de frondosas árvores em suas ruas residenciais. ainda com preguiça, levantou-se. ana leve, leviana. fez de conta que não viu o espelho preso logo à frente da cama. cabelos rubros e desgrenhados, olheiras que lhe incutiam uma semana de sono perdido. quase despida caminhou até a cozinha.
na bancada estava eu, inerte e bruto. tinha feito um bule inteiro de café, ainda que ana não pudesse sorver daquela iguaria. fazia clareamento nos dentes. "bom dia", disse-me e beijou-me a face. era sempre assim, como num script. sempre tão mal humorado pelas manhãs, eu me detinha. por ana. me prendia àquela bancada quando minha vontade era de tê-la ali, por sobre ela, com todos os sobressaltos. por ana. mas eram ainda seis horas.
ana caminhou pela pequena sala. abriu a porta da varanda. respirou fundo e alongou-se. ana tinha essa mania de esticar-se ao sol como se fosse bicho. nunca compreendi. dizia ela que era saudável. e de saúde eu nada entendia. fumava meu cigarro às seis e quinze, depois de uma caneca inteira de preto puro. e ana sempre me dizia: "pelo amor de deus, toma um suco!" e mesmo que fosse por ana, eu não o fazia. um velho vive de vícios. e eu era velho. de alma velha atrelada a um corpo de vinte e poucos anos. enquanto ela alva contorcia-se, eu imaginava. por ana. pôr ana em meu colo. ali, no chão, no meio da sala.
então voltou-se para mim e me sorriu. pé ante pé, seguiu até o banheiro. pareceu-me um convite. com ana e água fria naquela manhã quente. com ana. no mar das toalhas brancas que ela insistia em ter. combinavam, talvez, com a decoração. e disso eu não fazia idéia. usava sempre as mesmas camisas listradas e os mesmos jeans. uns tênis. umas havaianas. e tudo naquele apartamento era dela. e tudo que eu tocava era ela. e ela sorriu com a boca entreaberta como quem me convidara. e eu fui. bati na porta. com ana debaixo d'água. há quanto tempo! ainda que o último encontro tenha ocorrido no dia anterior, ali faziam-se décadas de uma solidão empedernida. matei-a na boca, nos braços, nos seios, nas coxas. com ana contra a parede gélida de azulejos. com as mãos firmes nas ancas.
era sábado. ana tinha os cabelos molhados escorrendo pelas costas. vagou nua até o quarto. vestiu uma camisa minha jogada ao léu. a tinta vermelha manchava o colarinho. a minha saliva manchou o seu pescoço e os meus dedos, o seu quadril. era sábado e estávamos de pé às sete e pouca. e ana vestia apenas aquela camisa velha. e eu a observava enquanto ela recolhia a roupa suja, meus tênis, os lençóis, seu sutiã. e ana cantarolava uma canção minha quase sem perceber. senti-me um cara de sorte. e, no entanto, um homem morto. porque se ana quisesse sair pela porta e não voltar mais, não saberia viver todas aquelas manhãs abafadas e inóspitas. estava, portanto, trancado em ana. e em ana me sentia cada vez mais livre. buscava em ana meu repouso e meu tormento. em ana fazia pé de vento para que minhas idéias pudessem voar. ana era uma metonímia minha. e a mais preciosa metáfora do amor. ana tinha-me em si como eu jamais a teria. em ana eu via minha fé, minha esperança, minha dor. e minha morte precoce. aos vinte e poucos anos. com a barba por fazer e dez cigarros em vinte minutos. porque se ana fosse embora, seriam trinta. e uísque ao invés do café. e as janelas todas fechadas velando a carcaça de homem ali deixada. em ana eu sou.
sem ana, não sei.
ouvindo: my favourite thing - silverchair.
you're my favourite thing - the one that i love
you're the one so i'd die for your love
and i feel like letting go...
o calor despertou-a. ressonava leve por sobre o colchão no canto do quarto. acima, uma janela. e não ventava ou chovia naquele modesto bairro da zona norte. era a maldição do superaquecimento que havia chegado até mesmo para os que se escondem debaixo de frondosas árvores em suas ruas residenciais. ainda com preguiça, levantou-se. ana leve, leviana. fez de conta que não viu o espelho preso logo à frente da cama. cabelos rubros e desgrenhados, olheiras que lhe incutiam uma semana de sono perdido. quase despida caminhou até a cozinha.
na bancada estava eu, inerte e bruto. tinha feito um bule inteiro de café, ainda que ana não pudesse sorver daquela iguaria. fazia clareamento nos dentes. "bom dia", disse-me e beijou-me a face. era sempre assim, como num script. sempre tão mal humorado pelas manhãs, eu me detinha. por ana. me prendia àquela bancada quando minha vontade era de tê-la ali, por sobre ela, com todos os sobressaltos. por ana. mas eram ainda seis horas.
ana caminhou pela pequena sala. abriu a porta da varanda. respirou fundo e alongou-se. ana tinha essa mania de esticar-se ao sol como se fosse bicho. nunca compreendi. dizia ela que era saudável. e de saúde eu nada entendia. fumava meu cigarro às seis e quinze, depois de uma caneca inteira de preto puro. e ana sempre me dizia: "pelo amor de deus, toma um suco!" e mesmo que fosse por ana, eu não o fazia. um velho vive de vícios. e eu era velho. de alma velha atrelada a um corpo de vinte e poucos anos. enquanto ela alva contorcia-se, eu imaginava. por ana. pôr ana em meu colo. ali, no chão, no meio da sala.
então voltou-se para mim e me sorriu. pé ante pé, seguiu até o banheiro. pareceu-me um convite. com ana e água fria naquela manhã quente. com ana. no mar das toalhas brancas que ela insistia em ter. combinavam, talvez, com a decoração. e disso eu não fazia idéia. usava sempre as mesmas camisas listradas e os mesmos jeans. uns tênis. umas havaianas. e tudo naquele apartamento era dela. e tudo que eu tocava era ela. e ela sorriu com a boca entreaberta como quem me convidara. e eu fui. bati na porta. com ana debaixo d'água. há quanto tempo! ainda que o último encontro tenha ocorrido no dia anterior, ali faziam-se décadas de uma solidão empedernida. matei-a na boca, nos braços, nos seios, nas coxas. com ana contra a parede gélida de azulejos. com as mãos firmes nas ancas.
era sábado. ana tinha os cabelos molhados escorrendo pelas costas. vagou nua até o quarto. vestiu uma camisa minha jogada ao léu. a tinta vermelha manchava o colarinho. a minha saliva manchou o seu pescoço e os meus dedos, o seu quadril. era sábado e estávamos de pé às sete e pouca. e ana vestia apenas aquela camisa velha. e eu a observava enquanto ela recolhia a roupa suja, meus tênis, os lençóis, seu sutiã. e ana cantarolava uma canção minha quase sem perceber. senti-me um cara de sorte. e, no entanto, um homem morto. porque se ana quisesse sair pela porta e não voltar mais, não saberia viver todas aquelas manhãs abafadas e inóspitas. estava, portanto, trancado em ana. e em ana me sentia cada vez mais livre. buscava em ana meu repouso e meu tormento. em ana fazia pé de vento para que minhas idéias pudessem voar. ana era uma metonímia minha. e a mais preciosa metáfora do amor. ana tinha-me em si como eu jamais a teria. em ana eu via minha fé, minha esperança, minha dor. e minha morte precoce. aos vinte e poucos anos. com a barba por fazer e dez cigarros em vinte minutos. porque se ana fosse embora, seriam trinta. e uísque ao invés do café. e as janelas todas fechadas velando a carcaça de homem ali deixada. em ana eu sou.
sem ana, não sei.
ouvindo: my favourite thing - silverchair.
you're my favourite thing - the one that i love
you're the one so i'd die for your love
and i feel like letting go...